A subjetividade dentro do Direito de Família está cada vez mais sendo considerada. Já não se pode ignorar que os litígios são fundamentados não apenas pelo campo do jurídico, mas também alimentados por sentimentos e pela subjetividade daqueles que estão envolvidos. Destarte, não se pode desconsiderar a existência de tal subjetividade, sob pena de se resolver o litígio juridicamente, permanecendo existente, todavia, nos lares das famílias brasileiras. A resolução do Direito de Família, hoje em dia, passa também pelo amadurecimento da subjetividade dos envolvidos.
O começo da consideração da subjetividade não está em uma mera opinião de um professor de direito menos conservador, de um juiz reacionário ou mesmo das partes envolvidas num processo de discussão de guarda. O começo está na própria Constituição Federal, que trouxe um novo panorama para todo o direito civil clássico transformando a ótica em que devem ser observadas a família, a propriedade e os contratos.
A concepção do direito civil, a partir de 1988, passa a dar menos ênfase ao patrimônio e mais ênfase às pessoas. O importante é o ser e não o ter. Tal quadro também pode ser vislumbrado no Direito de Família, principalmente quando o art. 226[1], amplia a proteção de seus entes, especialmente no que condiz com os parágrafos 3º, quanto à união estável, 4º, com maior ampliação da entidade familiar (formada, nos termos do artigo 226, pelo casamento, união estável e por qualquer um dos pais e seus descendentes) e 8º, com a proteção de seus membros individualmente.
A Constituição da República consagra, portanto, os valores da família plural e eudemonista, na esteira das legislações infraconstitucionais e da jurisprudência dos Tribunais brasileiros que a antecederam, diferentemente do que o Código Civil de 1916 previa como ficção familiar, modelo a ser seguido e dele – somente dele – advinham direitos para seus membros, protegendo e sacramentando a instituição. O importante era a manutenção a qualquer preço da instituição familiar, em detrimento da felicidade de seus membros ou de um equilíbrio entre a sobrevivência da família e a vontade individual de cada um deles.
O fato é que se ignoravam alguns direitos fundamentais, tais como a igualdade entre homens, mulheres e na filiação, sendo a família reflexo de uma relação eterna, fundamentada e constituída apenas pelo sacramento do casamento. As legislações extravagantes que se seguiram ao Código, mormente a partir da segunda metade do século XXI, supriram algumas das falhas, mas não traduziram a realidade social vivida no último século (possibilidade de divórcio, igualdade da filiação, união estável, dentre outras), delegando aos tribunais a resolução dos casos, o que gerava entendimentos diversos (uns conservadores, outros avançados para a época) sobre uma mesma matéria.
A posição das legislações extravagantes, seguidas pela jurisprudencial, doutrinária e constitucional culminou por identificar a família como não mais apenas aquela decorrente do casamento entre um homem e uma mulher e os filhos advindos desta união, buscando uma nova ligação social para o conceito jurídico.
O novel conceito de família, com a utilização dos elementos psicanalíticos, é delimitado por Rodrigo da Cunha Pereira: “A partir de LACAN e LÉVI-STRAUSS, podemos dizer que família é uma estruturação psíquica em que cada membro ocupa um lugar; uma função. Lugar de pai, lugar de mãe, lugar de filhos, sem, entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente”.[2]
A partir das funções que cada membro ocupa legitimam-se aquelas famílias não constituídas pelo casamento, mas sim, por união estável, monoparentais, pelas uniões homossexuais. Para a constituição psíquica saudável de um sujeito, segundo a Psicanálise, não é necessário, tal como pensavam as antigas gerações, a concepção tradicional da família, razão por que tal teoria ampara a multiplicidade de formas familiares, desde que cada componente possa realizar cada uma das funções a ele inerentes.
Isto pode ser facilmente percebido no dia-a-dia das Varas de Família, como também nos casos que ganham certa repercussão na mídia brasileira, pois o Poder Judiciário costuma dar proteção não somente às famílias tradicionais, avaliando a real situação familiar, impedindo a alta carga de preconceito social com as situações diferentes e inusitadas que surgem. Exemplo disto são os casos de adoção por casais de homossexuais e a orientação doutrinária e jurisprudencial de que os casos relativos às uniões homoafetivas devem ser levados para as Varas de Família e não para as Varas Cíveis.
Os sujeitos pertencentes às famílias, lidas, agora, sob uma concepção que valoriza suas subjetividades, conquistaram seus espaços e funções internas, passando a Constituição de 1988 a proteger e legitimar tais espaços, por mais que não traduzissem a idéia tradicional daquela instituição. Atenta Maria Rita Kehl que os consultórios estão lotados de pacientes que querem ter uma família “normal”, e que o padrão familiar ideal da família de classe média brasileira ainda é o tradicional, lamentando-se as pessoas ao dizer “A família não é mais a mesma”[3].
Sim, efetivamente, “A família não é mais a mesma”. O que não quer dizer que é melhor ou pior, mas que está diferente, eis que considera a subjetividade do seus membros e traz à tona, na prática, novas experiências nas demandas que envolvem litígios familiares. Os juízes, promotores, serventuários e, principalmente, os advogados devem estar atentos a esta nova realidade, subjetivando as demandas de forma a escutar a subjetividade e resolver amplamente o problema que lhes é trazido.
Neste processo de escuta diferenciada, tem suma importância não só os advogados em seus escritórios (orientando seus clientes quanto a real necessidade de se ingressar no Poder Judiciário e sobre a ampla gama de possibilidades na resolução dos conflitos), os promotores, nos pareceres, e os juízes nas audiências e sentenças, mas também os serviços multidisciplinares de pesquisa social e laudos periciais.
Ademais, ganha importância nesta busca pela consideração das subjetividades, o trabalho de mediação. Já existem alguns trabalhos de mediação nas Varas de Família, bem como escritórios de advocacia que dão preferência para, anteriormente à proposição das demandas, orientar seus clientes para que eles mesmos cheguem a uma solução conciliatória de seus conflitos. O investimento em pessoal no Poder Judiciário e em técnicas alternativas de resolução de litígios é fundamental para bons resultados.
Ou seja, a crise familiar demonstra que as famílias estão pedindo socorro devendo o Direito e aqueles que com ele trabalham também procurar uma forma de melhor orientá-las, pela escuta da subjetividade dos sujeitos, orientação dos serviços multidisciplinares, principalmente de psicologia, pela conciliação e mediação dos conflitos pelos advogados antes da propositura no Judiciário e, no caso de litígios, pela sensibilidade do juiz ao prolatar uma decisão nos casos familiares.
Pois a família, seja social ou juridicamente, deve ser vista pelos seus membros como um “refúgio de afeto”, nas palavras de Luiz Edson Fachin. O que implica procurar preservar este lugar referencial mesmo depois de uma estadia passageira de seus problemas no Poder Judiciário. A felicidade de seus membros depende do quanto se poderá sustentar este refúgio depois das adversidades.
[1] “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º Para efeito da proteção do estado, é reconhecida a União Estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado proporcionar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.
[2] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família, Direitos Humanos, Psicanálise e Inclusão social. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v.4, n. 16, jan/fev./mar., 2003, p.8.
[3] KEHL, Maria Rita. Em defesa da família tentacular. In: GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Op. cit., p. 164.
excelente artigo, meus cumprimentos.